Porque deixei de procurar emprego, de Artur Anjos
Depois de um certo tempo, as coisas tornam-se mais fáceis. As cores de Outono parecem menos opressivas, as viagens intermináveis a pé não tão aborrecidas. Fiquei desempregado há 2 anos. Não fiz caso na altura, tive direito a subsídio de desemprego e sabia que qualquer coisa se iria virar para eu me agarrar. Custou acordar sem ter nenhum sítio em concreto onde ir. É uma sensação esquisita, de inutilidade, como se o planeta inteiro nos virasse costas e resmungasse ‘não precisamos de ti’. Fiz questão de me levantar todos os dias à mesma hora de sempre, tomar o pequeno-almoço, que era torrada com cerejas e café, ao fim de 3 meses torrada com café, depois de 6 meses apenas café e depois o café foi mirrando, mirrando até não ser muito mais que borras sujas do café feito no dia anterior. O que fazia eu de manhã para me levantar às 7h? Ia para o o café ler as notícias diárias e até me aventurei a aprender alemão. Eine schrecklich sprache! Como é bom de ver, ao fim de um certo tempo o subsídio deixou de aparecer e deixei de pagar a luz. Acho que consigo demonstrar matematicamente a relação entre existência de electricidade e tempo passado em casa: Tempo(electricidade)=electricidade x a casa apenas serve para dormir.
O primeiro dia que passei fora de casa de manhã até à noite foi doloroso. Sem dinheiro no bolso, apenas podia andar para matar o tempo e por isso fui desde o Parque das Nações até Algés… E voltei. Já não sou propriamente novo, descobri. Há uma coisa interessante em andar tanto, comendo pouco. Os pés doem mais parados que em movimento, um certo cheiro constante a suor, como se um boi andasse sempre a nosso lado, toma conta da roupa, dos sovacos, das virilhas, enfim do corpo todo. Um cuspo, que não é bem cuspo, mas sim mais uma gosma viscosa está sempre na boca. Não vale a pena cuspir, que ela está sempre comigo. Quer dizer, a menos que coma uma bola de berlim.
Às vezes não dá para andar mais para matar o tempo e aí começo a pensar no que eu fazia, como se há uma vida tivesse acontecido. Levantava-me, ia para o trabalho, sentia-me numa vida estúpida sem sentido a correr para o caixão. Agora, sinto fome por vezes, doem-me os pés, as pernas. Quando eu podia ir ao hospital, tinha úlceras, agora que não tenho forma de ir, sou saudável que nem um cãozinho acabado de nascer. Ainda assim, quando o corpo se queda em frente a uma montra e eu vejo o meu próprio reflexo, vejo as covas na cara, os olhos protuberantes, como que a querer fugir deste corpo a afundar.
Comecei a escrever isto para me lembrar do porquê de ter deixado de procurar emprego e algures terei de começar. A minha casa apenas é minha ainda porque a minha filha me faz a gentileza de pagar a renda. Gostava de passar mais tempo com ela, mas sinto-me envergonhado com tudo isto. Mais e mais me sinto deslocado, como se a minha passagem por esta bela Terra se divida em 2 partes: aquela em que um zombie tomou conta do meu corpo e aquela em que agora vivo. Isto que agora sou, não é muito mais que ser sem-abrigo, mendigo na rua com uma casa da qual sente medo - isto não sei explicar. É como se a minha casa fosse um fantasma a lembrar-me do desperdício que a minha vida foi e a inutilidade em que se tornou. Prefiro dormir na rua.
Neste momento, pouco me interessa o desemprego. Já não vivo nessa condição de empregado/desempregado. Sou hoje despegado de qualquer sentimento de sucesso para comigo mesmo. Não digo que o desemprego me tenha tornado uma pessoa melhor, mais perto do caminho para a felicidade. Felicidade... A verdadeira palavra responsável por agrilhoar tantas pessoas a empregos que detestam. Eu era assim, pensava que poderia estar infeliz, mas ainda estaria mais infeliz se desempregado. Não é mentira, mas de que adianta viver infeliz pouco ou muito?
in "Fendamel" por Artur Anjos
Li este texto e achei um testemunho muito interessante, por isso decidi partilhar. Espero que vos diga algo.